INDEX
ST5 - 20

O ARQUEANO/PALEOPROTEROZÓICO ALÓCTONE NA FAIXA BRASÍLIA MERIDIONAL: UMA JANELA PARA O EMBASAMENTO OCULTO DA MARGEM CONTINENTAL SANFRANCISCANA

Valeriano, C.M.1, 2; Almeida, J.C.H. 1; Duarte, B.P. 1,2; Ragatky, C.D. 1; Palermo, N.1

 

1. TEKTOS - Grupo de Pesquisa em Geotectônica, UERJ, Rua São Francisco Xavier 524/4006-A, 20559-900, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. cmval@uerj.br

2.        Pesquisador do CNPq
 

ABSTRACT

The embasement of the Palaeocontinent São Francisco peripheral areas is almost hidden by the overthrust belts of the surrounding orogens which have ended up delineating the São Francisco Craton. In the western Brasilia Belt, the Ilicínea-Piumhi Overthrust System contains important tectonic slabs of Palaeoproterozoic and Archaean rocks which gives an idea of the geologic constitution of the SW sector sanfrancisc embasement. The lithologic associations belonging to the embasement are: a volcanic association  Greenstone Belt type (>3.1 Ga) intruded by calc-alkaline granites (ca. 2.94 Ga); a Turbiditic Unit, probably Archaean in age, which source area has been the granite-greenstone belt association; a tectonic slab of metaultramafites with podiform chromite; and a  metasedimentary succession including BIF, carbon filites and quartzitic metaconglomerates which maximum age is ca. 2.0Ga.

Palavras-chave: Embasamento, granito-greenstone, Arqueano, Paleoproterozóico, Piumhi

INTRODUÇÃO

Reconstituições paleogeográficas de supercontinentes envolvem a justaposição de fragmentos continentais menores (crátons) que foram relativamente preservados de orogenias subsequentes. As reconstituições assim alcançadas (ex Gondwana, Rodínia etc) devem tanto compatibilizar com os dados paleomagnéticos porventura existentes como contemplar o ajuste de províncias tectônicas entre os fragmentos continentais justapostos.

No caso do Paleocontinente São Francisco, individualizado por tafrogênese a 0.9 Ga, vastas porções da sua periferia estão recobertas por nappes e cinturões de cavalgamentos gerados durante a colagem do supercontinente Gondwana, ocultando a natureza do seu substrato cratônico. Exemplos expressivos do recobrimento do antepaís por cavalgamentos são as faixas Brasília e Sergipana, respectivamente a SW e a NE do cráton.

A reconstituição do contorno do Paleocontinente São Francisco, apresentada por Alkmim et al. (1993) e Ussami (1993) é baseada, principalmente, na identificação de descontinuidades gravimétricas anteriores às orogenias Neoproterozóicas (Brasilianas) e balizada pela ocorrência de remanescentes ofiolíticos (p. ex. Pedrosa-Soares et al., 1998), que marcam zonas de sutura. O quadro da região meridional do Cráton do São Francisco (Fig. 1) mostra que os alóctones externos e internos

 

 

 Figura 1. Localização do Sistema de Cavalgamento Ilicínea-Piumhi (em preto) na Faixa Brasília meridional, em relação ao Cráton e ao Paleocontinente São Francisco (Alkmim et al., 1993; Ussami, 1993).

 

(nappes de Araxá, Passos e Guaxupé) avançaram significativamente sobre a plataforma paleocontinental.

Uma importante janela para o estudo da geologia deste setor do embasamento sanfranciscano oculto é o Sistema de Cavalgamentos Ilicínea-Piumhi- SCIP, na Faixa Brasília meridional (Valeriano et al., 2004a). Rochas Arqueanas e Paleoproterozóicas relativamente bem preservadas ocorrem na forma de lascas tectônicas em meio a outras escamas de metassedimentos neoproterozóicos plataformais.

Este trabalho apresenta uma síntese do conhecimento geológico sobre estas raras amostras do embasamento da margem passiva ocidental do paleocontinente São Francisco. Salvo referência específica, todas as idades U-Pb reportadas aqui foram publicadas por Valeriano et al. (2004b).

 O SISTEMA DE CAVALGAMENTO ILICÍNEA-PIUMHI

O Sistema de Cavalgamentos Ilicínea-Piumhi (Valeriano, 1992) é uma pilha de escamas de cavalgamento de 80 km de extensão que foi empurrada sobre ardósias e metaconglomerados do Grupo Bambuí durante os processos colisionais neoproterozóicos. A Nappe de Passos, cujo auge metamórfico foi atingido em ca. 0.64 Ga., foi exumada neste processo e recobriu tectonicamente ambos os conjuntos acima.

O SCIP merece denominação própria devido a sua peculiar identidade litológica e estrutural no contexto da Faixa Brasília meridional. Numerosas escamas de empurrão (Fig 2) constituídas por metassedimentos neoproterozóicos (Sequência Serra da Boa Esperança) são imbricadas tectonicamente com lascas de rochas do seu embasamento Arqueano-Paleoproterozóico, todas deformadas em fácies xisto verde (zona da clorita). A sedimentação siliciclástica neoproterozóica da Sequëncia Serra da Boa Esperança mostra litofaciologia de plataforma proximal em relação às litofácies de talude do Grupo Araxá presentes na Nappe de Passos.

O SCIP é falhado e deslocado em 15 Km por uma zona transcorrente levógira que tem continuidade com a Rampa Lateral de Capitólio, estrutura originalmente dúctil que limita a Nappe de Passos em seu flanco norte.

 GEOLOGIA DO EMBASAMENTO NO SCIP

Será seguida uma ordem geocronológica para a descrição da geologia das rochas do embasamento, com base na geocronologia disponível. 

Associação granito-greenstone de Piumhi

Ocorre como lentes tectônicas na base do SCIP, entre as quais se destaca uma escama de maior porte que pode ser seguida desde Piumhi até Ilicínea. Na sua porção mais setentrional, descrita detalhadamente por Schrank (1982), predomina uma sucessão metavulcano-sedimentar com idade mínima de 3.11 Ga (Machado & Schrank, 1989).

 


Figura 2. Mapa tectônico do Sistema de Cavalgamento Ilicínea-Piumhi.

 

A sequência inclui derrames komatiíticos e basálticos almofadados com texturas do tipo spinifex (Jahn & Schrank, 1983) em associação com vulcanitos básicos a ácidos e raros metapelitos carbonosos. Na parte sul desta escama predominam rochas granitóides com graus variáveis de milonitização e filonitização que, em Piumhi, exibem relações intrusivas com a sequência vulcânica e têm idade mínima de 3.02 Ga. (idade 207Pb-206Pb em titanita). Mais ao sul, a leste de Ilicínea, uma suíte TTG cálcio-alcalina (Valeriano, 1992) com predominância de hornblenda-granitos e granodioritos, tem idade U-Pb de 2.94 Ga. Uma idade K-Ar em hornblenda de 2.25 Ga (Valeriano et al., 2000) revela resfriamento no Paleoproterozóico. 

Unidade Turbidítica

Recobrindo (por empurrão? discordância?) a associação granito-greenstone, os turbiditos são finamente acamadados com ciclos centimétricos siltito-pelito granodecrescentes. Litofácies mais proximais constituem-se de ciclos granodecrescentes de espessuras decimétricas compostas por arenito/wacke grosso contendo intraclastos pelíticos, localmente com laminação cruzada e convoluta. A composição dos litoclastos nos metarenitos aponta para uma proveniência a partir da associação granito-greenstone. Três idades modelo Sm-Nd (TDM) não publicadas, entre 2.5 e 2.75 Ga, dão uma indicação da área fonte predominantemente arqueana deste pacote. Outra indicação é o padrão dos elementos terras raras de uma amostra de metapelito, quase idêntico ao da média dos pelitos arqueanos calculados por Taylor & McLennan (1985), em contraste com padrões de pelitos pós-Arqueanos (Fig. 2).

 

Figura 3:. O padrão de elementos terras raras de uma amostra de pelito da Unidade Turbidítica (círculo cheio), similar à composição média de pelitos arqueanos (losangos cheios), contrasta com padrões de pelitos pós-arqueanos (Taylor & McLennan, 1985)

 

Rochas meta-ultramáficas cromitíferas

Ao longo do empurrão que recobre a Unidade Turbidítica, ocorrem lentes tectônicas de serpentinitos e talco-filitos altamente tectonizados, portadores de cromitito podiforme, com ocorrências conhecidas e garimpadas desde a década de 1940 (Barbosa & Lacourt, 1940; Araújo, 1943).

Unidade Serra da Mamona

Seções mais completas ocorrem na Serra da Gabiroba, ao sul de Piumhi, onde níveis métricos de formação ferrífera bandada (jaspilitos magnetíticos finamente laminados) transicionam para metapelitos carbonosos laminados e maciços. Este pacote basal grada para arenitos e conglomerados finamente acamadados que, no topo, contêm lentes de metaconglomerado cinzento grosso. Idades U-Pb (LA-ICPMS) de zircões detríticos são majoritariamente arqueanos (> 2.7 Ga). O zircão mais jovem (ca. 2.0 Ga) indica a idade máxima para os conglomerados. O caráter marcadamente granocrescente do conjunto sugere resultar do avanço de delta que preencheu depressões profundas.

Xisto Costas

O Xisto Costas ocorre na forma de uma escama tectônica basal empurrada diretamente sobre metassiltitos laminados (ardósias) do Grupo Bambuí, a leste de Ilicínea. É representado por um muscovita xisto feldspático muito homogêneo rico em epidoto. A ausência de zircões detríticos no xisto e a abundância de zircões idiomórficos aciculares datados em 1.72 Ga. (U-Pb TIMS), sugerem afinidade vulcänica para o protólito. Este pode ser um testemunho local do importante episódio de rifteamento estateriano, que no Cráton do São Francisco oriental é denominado de Evento Espinhaço .

CONCLUSÕES

O conjunto dos dados mostra uma grande diversidade litológica e geocronológica, incluindo desde rochas mesoarqueanas até rochas paleoproterozóicas correlacionáveis ao Evento Espinhaço (ca. 1.75 Ga).

São dignos de nota o baixo grau metamórfico e o excelente grau de preservação de estruturas primárias quando as rochas foram poupadas da deformação neoproterozóica.

Até onde os dados permitem inferir, observa-se que o conjunto em questão foi essencialmente poupado do retrabalhamento do Evento Transamazônico que, em outras áreas do Cráton do São Francisco meridional, provocou metamorfismo de alto grau e intensa granitogênese. Pode-se inferir, neste contexto, que a amostra da crosta que foi colhida e exposta pelos cavalgamentos neoproterozóicos é uma porção de um núcleo cratônico arqueano. 

AGRADECIMENTOS

Este trabalho contou com financiamento da UERJ, na forma de trabalhos curriculares de campo. Apoio do CNPq na forma de financiamento (Procs. 471931/01) e Bolsa de Produtividade à Pesquisa (proc. 301717/2003-6). 

REFERÊNCIAS

Alkmim, F.F.; Neves, B.B.B.; Alves, J.A.C. 1993. Arcabouço tectônico do Cráton do São Francisco - uma revisão. In: Dominguez, M.L. & Misi, A. (eds.), O Cráton do São Francisco: trabalhos apresentados na reunião preparatória do II Simposio sobre o Cráton do São Francisco, Salvador, 1992. SBG-SGM-CNPq, pp. 45-62.

Araújo, J.B. 1943. Cromita da Fazenda Caxambú, Piui. Boletim do Laboratório de Produção Mineral, DNPM, Rio de Janeiro, 23:71-95.

Barbosa, O. & Lacourt, F. 1940. Cromita em Piui. Mineração e Metalurgia, Rio de Janeiro, 5(25):39-43.

Jahn, B-M. & Schrank, A. 1983. REE geochemistry of komatiites and associated rocks from Piumhi, southeastern Brazil. Precambrian Research 21:1-20.

Machado, N. & Schrank, A. 1989. Geocronologia U/Pb no maciço de Piumhi - resultados preliminares. In: Simposio de Geologia de Minas Gerais 5, Belo Horizonte. Anais… SBG, Núcleo Minas Gerais, Bol. 10: 45-49.

Pedrosa-Soares, A.C.; Vidal, P.; Leonardos, O.H.; Brito Neves, B.B. 1998. Neoproterozoic oceanic remnants in eastern Brazil: further evidence and refutation of na exclusively ensialic evolution for the Araçuaí-West Congo orogen. Geology 26:519-522.

Schrank, A. 1982. Petrologie des komatiites et des roches associées de la ceintures verte du Massif Précambrien de Piumhi (Minas Gerais - Brazil). Thèse 3ème Cycle, Université de Paris-Sud, Orsay, 270 p.

Taylor S.R. & McLennan, S.M. 1985. The continental crust: its composition and evolution. #000066well, Oxford, 312 pp.

Ussami, N. 1993. Estudos geofísicos no Cráton do São Francisco: estágio atual e perspectivas. In: J.M.L. Dominguez & A. Misi (eds) O Cráton do São Francisco. Salvador, SBG/SGM/CNPq, pp. 35-43.

Valeriano, C.M.; Simões, L.S.A.; Teixeira, W.; Heilbron, M. 2000. Southern Brasilia belt (SE Brazil): tectonic discontinuities, K-Ar data and evolution during the Neoproterozoic Brasiliano orogeny. Revista Brasileira de Geociências,  30:195-199.

Valeriano, C.M., Dardenne, M. A., Fonseca, M.A., Simões, L.S.A., Seer, H.J. 2004a. A Evolução Tectônica da Faixa Brasília. In: V. Mantesso Neto, A. Bartorelli, C.D.R. Carneiro, B.B. Brito Neves (Organizadores), Geologia do Continente Sul-Americano – Evolução da obra de Fernando Flávio Marques de Almeida. Beca Ed, pp 575-592.

Valeriano, C.M.; Machado, N.; Simonetti, A.; Valladares, C.S.; Seer, H.J.; Simões, L.S.A. 2004b. U-Pb geochronology of the southern Brasilia belt (SE-Brazil): sedimentary provenance, Neoproterozoic orogeny and assembly of West-Gondwana. Precambrian Research 130: 27-55.