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DA CRATONIZAÇÃO RIACIANA À METACRATONIZAÇÃO EDIACARIANA NO PALEOCONTINENTE SÃO FRANCISCO-CONGO. PARTE i: MINAS GERAIS

 

 

Silva, L.C. da 1,2; Noce, C.M. 2,3; Pedrosa-Soares, A.C. 2,3;  J. B. Rodrigues, J.B. 1

 

1. CPRM-Serviço Geológico do Brasil, SGAN 603-Conj. J, Parte A, 1 Andar, 70.830-130, Brasília - DF, Brasil. luizcarlos@df.cprm.gov.br

2. Pesquisador do CNPq

3. CPMTC-IGC-UFMG, Av. Antônio Carlos, 6627, 31270-901, Belo Horizonte - MG, Brasil.

 

ABSTRACT

The focus of this study is the eastern border of the São Francisco Craton and adjacent orogens, in the scenario of the Proterozoic São Francisco-Congo Paleocontinent, from a SHRIMP U-Pb zircon geochronological perspective. It is based in some 40 analyses performed by the senior author in key-units from these terranes. The results were as useful analytically as they were geologically, clarifying the manner in which the eastern cratonic border was organized during the Proterozoic window. They also provided a robust tool for distinguishing multiply deformed terranes that are otherwise difficult to be discriminated on the basis of field and structural observations alone. This approach enables us to propose a more realistic configuration for the first post-Archean accretionary episode around the original cratonic nucleous, the Rhyacian Mineiro Belt and to reconstruct its organization and evolution. The belt evolved as a typical accretionary orogen, characterized by an extensive and protracted pre- to syn-collisional arc-accretionary stage, extending from ~ 2200 Ma to 2060 Ma, with a first metamorphic overprinting climax ages (M1) dated at ~ 2040-2030 Ma. At the waning stages of the W-directed collision of the Araçuaí Orogen (dated at ~590-560 Ma) onto the Archean/Paleoproterozoic continental margin of the SFC, this eastern cratonic segment was once again involved in shortening and metamorphic overprinting (M2) processes which present similarities with the decratonization (metacratonization) process reported on the Saharan Metacraton.

 

Palavras-chave: U-Pb SHRIMP; Cráton São Francisco-Congo; Orógeno Mineiro; Orógeno Araçuaí

 

INTRODUÇÃO

Cráton é um setor da litosfera continental que restou relativamente estável ao fim de uma orogenia ou colagem, apresenta raiz profunda e suas coberturas são, em grande parte, preservadas da deformação compressiva. O conceito envolve necessariamente o fator tempo, i.e., o tempo de duração de uma determinada orogenia ou colagem. À luz da Teoria da Tectônica Global, os crátons são os núcleos duros (hard cores) dos continentes, em torno dos quais a crosta continental cresce como resultado de orogenias/colagens sucessivas. O conceito de metacráton foi proposto para designar aqueles crátons que mostram retrabalhamento orogênico marcante em suas bordas e/ou interior sem, entretanto, serem desmembrados em fragmentos completamente separados por litosfera oceânica (Abdelsalam et al., 2002).

Este artigo apresenta, com base em significativo acervo de análises U-Pb SHRIMP (Silva et al., 2002) e no mapa tectonogeológico da região (Silva et al., 2005; Fig. 1), uma reconstituição da cratonização riaciana, resultante da formação original do Paleocontinente São Francisco-Congo (no cenário da Atlântica paleoproterozóica ou não; Rogers & Santos, 2004), que antecedeu à abertura da bacia Araçuaí-Congo Ocidental (Toniano-Criogeniano) e sua posterior inversão orogênica no Ediacariano. A metacratonização ediacariana resultou da cicatriz de tectônica compressiva e episódios térmicos que a evolução do orógeno confinado Araçuaí-Congo Ocidental (Pedrosa-Soares et al. 2001) deixou no interior do Paleocontinente São Francisco-Congo.

 

O CINTURÃO MINEIRO REDEFINIDO E A CRATONIZAÇÃO RIACIANA

O maior avanço dessa integração foi a datação precisa e discriminação cartográfica de uma extensa unidade ortognáissica posicionada no domínio do Orógeno Araçuaí, mas associada à evolução de um orógeno  paleoproterozóico (Cinturão  Mineiro/CM; vide Teixeira & Figueiredo, 1991; Figueiredo & Teixeira, 1996; Teixeira et al., 1996, Teixeira et al., 2000). Apesar da intensa transposição estrutural e recristalização em dois


Figura 1. Esboço tectono-geológico do segmento oriental do Craton do São Francisco em Minas Gerais e do segmento setentrional da Província Mantiqueira (ampliado e modificado de Silva et al. (2005))

eventos de alto grau, os estudos dos zircões em luz pancromática por catodoluminescência (CL) permitiram a identificação e datação em separado das idades de cristalização magmática (~2.200 Ma a ~2.060 Ma) e idades do metamorfismo M1 (~2040-2030 Ma) e M2 (~560 Ma). A figura 1 mostra a totalidade das datações aqui discutidas com as idades de cristalizações em vermelho e de metamorfismo em azul.

Os dados obtidos possibilitaram a clara correlação destes ortognaisses com os batólitos originariamente atribuídos ao arco magmático do CM, bem preservados na borda meridional do núcleo arqueano do Cráton do São Francisco (CSF) (Noce et al. 2000), permitindo que esta unidade ortognáissica seja classificada como uma extensão oriental do arco. Além disso, o intervalo de idades obtidas para a acresção reforça a correlação destes ortognaisses com outros mais orientais, representados pelos complexos Juiz de Fora, Quirino, Caparaó e Pocrane. Todos, com idades de cristalização no intervalo de ~2220-2080 Ma (ver síntese em Silva et al. 2005) caracterizando uma sucessão de arcos riacianos sucessivamente mais antigos em direção a E (Fig. 1). Os protólitos dos ortognaisses apresentam misturas variáveis de material juvenil e produtos de refusão crustal, sugerindo acresção em um arco continental maturo. As idades do primeiro evento metamórfico (~ 2040-2030 Ma) constituem-se na melhor estimativa para a culminância do processo de amalgamação do CM à margem oriental do núcleo continental arqueano. A colisão foi necessariamente precedida pela subducção de uma crosta oceânica paleoproterozóica (ainda não caracterizada), sob uma margem continental situada a leste, no Paleocontinente Congo (upper plate, Alkmim & Marshak, 1998). Esse processo acrescionário-colisional resultou em uma expressiva expansão lateral para leste do discreto núcleo arqueano original (porção mineira do Cráton do Paramirim de Almeida, 1981), então restrito à região do QF e sua projeção N (Complexo Guanhães) como mostrado na figura. 1. Dessa forma, o CM pode ser classificado como um típico orógeno acrescionário-colisional riaciano, responsável pela edificação do grande bloco continental (São Francisco-Congo, ou Atlântica se composto de outras peças) que a partir do final do Paleoproterozóico seria submetido a sucessivos eventos de rifteamento, com a implantação das bacias Espinhaço e Araçuaí, seguido pela orogenia neoproterozóica e a individualização do CSF de Almeida (1977). O limite cratônico do CSF intercepta o antigo limite entre o CM e o núcleo arqueano, de forma que porções do arco magmático do CM são preservados no domínio cratônico, como os já citados batólitos do extremo sul do CSF, enquanto um extenso fragmento da crosta arqueana no chamado bloco ou Complexo Guanhães foi intensamente retrabalhado pela orogênese brasiliana, como comentado a seguir.

 

A OROGENIA E METACRATONIZAÇÃO EDIACARIANAS

A abertura da bacia Araçuaí-Congo Ocidental cindiu apenas parcialmente o Paleocontinente São Francisco-Congo, no Toniano-Criogeniano, delineando um grande golfo oceanizado a sul, mas ensiálico a norte onde se articula com os aulacógenos Paramirim e Sangha (e.g., Pedrosa-Soares et al. 2001). O processo acrescionário-colisional que definiu a margem oriental do CSF relacionou-se à subducção para leste da litosfera oceânica toniana, mais uma vez com o Cráton do Congo situado na placa cavalgante (upper plate) e o CSF na placa em subducção (lower plate; Pedrosa-Soares et al. 1998, 2001, Heilbron et al., 2004, Silva et al. 2005). Além do overprinting metamórfico em alto grau (~ 590-560 Ma) disseminado nos ortognaisses riacianos anteriormente relatados, a edificação do Orógeno Araçuaí na margem oriental do CSF retrabalhou não apenas a extensão setentrional do embasamento arqueano (Complexo Guanhães), como também o próprio hard core do Quadrilátero Ferrífero (Fig. 1a). Esse segundo pico ocorreu sob condições metamórficas de alto grau, de fácies anfibolito a granulito, provocando recristalização periférica moderada a avançada em todas as populações de zircão analisadas, possibilitando a obtenção de idades metamórficas não apenas através de regressão estatística (intercepto inferior), mas também por datação direta desses domínios sobrecrescidos. As idades obtidas para estes sobrecrescimentos situadas no intervalo ~520 e ~527 ± 45 Ma são, em regra, pouco precisas e mais novas que o clímax do evento colisional Araçuaí precisamente datado em diversos plútons no intervalo ~ 580-560 Ma (Pedrosa-Soares et al., 2001; Silva et al., 2005; vide Fig. 1). Este “rejuvenescimento” pode ter sido causado por perda de Pb nas bordas dos grãos durante o estágio pós-colisional, ao qual se associa extensa granitogênese relacionada ao colapso do orógeno (Pedrosa-Soares et al., 2001).

Na porção setentrional do embasamento do cráton (Complexo Guanhães na Fig. 1), que foi envolvido pelo Orógeno Araçuaí, caracteriza-se uma sucessão de arcos TTGs com idades de cristalização entre ~ 3000 e 2700 Ma e idades (mínimas) de metamorfismo de ~ 530 Ma. Como tanto as idades da acresção arqueana quanto do metamorfismo do Bloco Guanhães são similares às obtidas no hard core do Quadrillátero Ferrífero e adjacências (Teixeira et al. 1996; Noce et al., 1998) foi possível também esclarecer uma antiga discussão sobre a origem do bloco, o qual foi reposicionado como uma extensão setentrional dos TTGs do Quadrilátero Ferrífero e não como um terreno alóctone ou microcontinente.

No embasamento do arco magmático do Orógeno Araçuaí (complexos paleoproterozóicos Caparaó e Pocrane) verifica-se forte retrabalhamento em condições metamórficas de alto grau, aqui datads com precisão em torno de 585 Ma (Silva et al., 2002, 2005; Fig. 1). Como o arco magmático neoproterozóico foi edificado em margem continental (e.g., Pedrosa-Soares et al., 2001, Martins et al., 2004), resulta que os complexos Pocrane e Caparaó representam inliers do embasamento eburneano da margem passiva ocidental ao Cráton do Congo (i.e. a upper plate africana). E, conseqüentemente, o processo de metacratonização do Cráton do Congo é identificado no território brasileiro.

 

CONCLUSÕES: O METACRÁTON DO SÃO FRANCISCO-CONGO

A datação de sobrecrescimentos com idades de ~ 565 Ma nos plútons riacianos além do limite convencional do CSF (Figs. 1 e 1a) é muito interessante também do ponto de vista metodológico, pois levanta questões sobre a escala de abordagem, nível crustal investigado, e as ferramentas necessárias para o estabelecimento de limites entre cráton e orógeno. Na escala de investigação da deformação da cobertura de baixo grau metamórfico busca-se identificar frentes de empurrão e o envolvimento do embasamento. Como mostram os dados das Figura 1 e 1a, uma abordagem high-tech, permitindo o reconhecimento e medição em separado de multicomponentes isotópicos, até em escala intracristalina, possibilita o reconhecimento dos efeitos da orogenia além dos limite cratônicos convencionais, em rochas de níveis crustais mais profundos (portanto, em temperaturas maiores que afetam e são registradas pelo sistema U-Pb). Desta forma, a delimitação de um cráton, além dos critérios clássicos fundamentados na tectônica, ganhou maior solidez em função do avanço tecnológico com datações da alta resolução espacial que permitem identificar os efeitos de uma orogenia em profundidades diversas da crosta. Um exemplo é o Metacráton Sahariano, um imenso (5.000.000 km2) terreno de embasamento pré-Neoproterozóico retrabalhado por diversos cinturões pan-africanos, que deu origem ao conceito de metacráton (Abdelsalam et al., 2002): um cráton remobilizado durante um evento orogênico, mas que ainda é reconhecido  principalmente por suas características reológicas, geocronológicas e isotópicas”. Ou ainda, uma margem continental que em relação ao evento pan-africano ...não era um cráton nem um cinturão móvel, no sentido clássico dos termos. O extensivo retrabalhamento neoproterozóico de terrenos arqueanos e paleoproterozóicos, desde o limite convencional do CSF no Quadrilátero Ferrífero até o Estado do Rio de Janeiro, justifica a sugestão de que este segmento representaria parte de uma extensa unidade geotectônica similar à caracterizada na África sahariana: o Metacráton São Francisco-Congo.

 Como uma última conclusão e colaboração aos debates a respeito da evolução do CSF, é importante  salientar que crátons, a exemplo dos zircões, são para sempre. Ambos preservam hard-cores e/ou domínios inalterados passíveis de serem acessados, mesmo com a sobreposição de sucessivos episódios tectono-termais de alto grau.

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